Os artigos abaixo, publicados na coluna Tendências/Debates da Folha de São Paulo de 19 de dezembro de 2009, discutem o Exame de Ordem para a Medicina.

Ambos os artigos respondem a seguinte pergunta:

Os formados em medicina deveriam passar por um exame de habilitação, como a prova da OAB?

SIM

As dimensões da tragédia

JOSÉ LUIZ GOMES DO AMARAL e JORGE CARLOS MACHADO CURI

TEM-SE COMO certo serem os médicos profissionais bem preparados e atualizados, aptos a utilizar com precisão e segurança os mais modernos e eficientes recursos da ciência. Quem confiaria, portanto, sua vida e a de seus familiares a um médico, caso houvesse dúvida quanto à sua qualificação?
Não nos faltam, infelizmente, razões para duvidar. Pelo quinto ano consecutivo, o Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo) documenta o despreparo de muitos de nossos futuros médicos: mais da metade dos estudantes submetidos à avaliação foram reprovados. Visto ter sido a prova aplicada apenas em voluntários, muito provavelmente os resultados seriam ainda piores caso fossem todos obrigados a realizá-la.
Há mais de uma década, as entidades médicas vêm reiteradamente alertando a sociedade sobre os riscos da abertura de escolas de medicina sem qualificação. Tais denúncias, no entanto, não se mostraram suficientes para vencer os interesses econômicos e políticos associados à indústria do ensino superior.
Assim, diante da permissividade de sucessivos governos e da frouxidão da legislação, vê-se hoje no Brasil 178 faculdades de medicina, em sua maioria desprovidas de suficiente corpo docente qualificado na área médica ou hospital universitário próprio. Nessas instituições são anualmente autorizadas 17 mil novas vagas ao ano.
É bem possível que esses 17 mil exerçam a profissão durante, pelo menos, 40 anos. Não é difícil estimar quantos brasileiros estarão sob seus cuidados. Se, na melhor das hipóteses, cada um deles atender diariamente dez pessoas e o fizer cinco dias por semana, 11 meses ao ano ao longo da carreira, terá visto um número próximo de 100 mil pacientes.
Aplicando a esse grupo os índices catastróficos registrados neste ano na prova do Cremesp (56% erraram, no mínimo, 40% das questões formuladas), teremos, na turma de formandos de 2009, cerca de 9.500 médicos incapazes de diagnosticar ou tratar corretamente 40% dos casos. Em outras palavras, comprometendo perto de 400 milhões de atendimentos.
Tem-se assim a dimensão do prejuízo que deixamos acumular a cada ano que adiamos a solução desse problema! Não resta a menor dúvida de que a solução passa pela moralização do ensino médico, aqui obrigatoriamente incluídas as avaliações das escolas e de seus alunos.
Insensível à situação calamitosa configurada acima, o Congresso há seis anos mantém na gaveta o projeto de lei 65/03, que estabelece parâmetros para autorização de abertura e renovação de cursos de medicina.
Até que esse projeto seja aprovado e passe a vigorar, não haverá respaldo jurídico sólido para impedir o funcionamento de escolas médicas sem hospital de ensino próprio, sem corpo docente médico suficiente vinculado ao hospital universitário e sem programa de residência médica associado, requisitos essenciais para instituições dessa natureza.
A legislação é necessária, porém não suficiente para garantir a qualidade dos graduados. Faz-se obrigatório também avaliá-los. Entendemos que o processo de habilitação para o exercício da medicina não se deve restringir apenas a uma prova de fim de curso. Ele tem de incluir avaliações externas, realizadas por instituição independente (como o Conselho Federal de Medicina e a Associação Médica Brasileira) e, possivelmente, aplicadas ao término do segundo, do quarto e do sexto ano.
As avaliações ao longo do curso permitem o redirecionamento de alunos sem vocação ou preparo e constituirão instrumento complementar para o credenciamento das universidades.
Não se trata de ideia original. Esse modelo aproxima-se do adotado em países desenvolvidos que, há cerca de cem anos, passaram por circunstâncias semelhantes.
Não há outro caminho a seguir. Até quando vamos postergar uma decisão definitiva?


JOSÉ LUIZ GOMES DO AMARAL é presidente da Associação Médica Brasileira.
JORGE CARLOS MACHADO CURI é presidente da Associação Paulista de Medicina.

NÃO

Punir a faculdade, não o aluno

DR. ROSINHA

QUANDO ME mudei do interior paranaense para Curitiba, na década de 1970, além do sonho de ser médico, carregava uma enorme bagagem de desinformação. Queria ser médico, mas nada sabia sobre a qualidade do ensino das faculdades, que, na época, eram poucas.
Hoje, quantos jovens que desejam ser médicos sabem diferenciar uma boa faculdade de uma ruim?
Ao longo do curso de medicina, estudamos para sermos tecnicamente bons profissionais e imaginamos estar numa faculdade capaz de garantir tal resultado. Talvez poucos terminem o curso com a impressão de não estarem preparados para exercer a profissão. De qualquer forma, formam-se e vão ao conselho profissional se inscrever para trabalhar ou mesmo para continuar se aperfeiçoando, por meio da residência.
Todo cidadão ou cidadã tem o direto de ser atendido por bons profissionais, em qualquer área. Cabe ao Estado qualificar e fiscalizar as instituições que formam esses profissionais. Apesar de os conselhos ou ordens serem autarquias federais, não lhes cabe fazer essa fiscalização nem classificar os melhores ou piores alunos.
Seria bom se os conselhos, como os de medicina, de fato punissem os profissionais que cometem erros, abusos, omissões e outras irregularidades.
Os conselhos de fiscalização profissional começaram a se difundir no Brasil na primeira metade do século 20 com o objetivo de controlar atividades profissionais. Nas últimas décadas, porém, passaram a atuar notadamente na defesa da reserva de mercado. Nessa linha, tramitam no Congresso projetos de lei como o do ato médico e o do exame de suficiência para os formados em medicina.
A OAB aplica seu teste de suficiência, o que não impede a existência de advogados incapazes no mercado.
Como nas outras profissões, existem advogados que ludibriam clientes e dificilmente são punidos. São muitos os advogados e maior ainda o número de recém-formados que hoje questionam a validade dos exames da ordem.
Em geral, são testes feitos não para medir conhecimento, mas para dizer ao recém-formado que ele não sabe nada. A reprovação chega por vezes a percentuais próximos a 90%.
Há bons estudantes de direito que não conseguem passar na prova da OAB e que poderiam ser bons profissionais. Alguns são competentes, mas exercem a profissão no subemprego, com sub-remuneração. Trabalham para alguém que assina o processo. O que faz a OAB nesses casos?
Os conselhos de medicina querem o mesmo destino? Acham que esses recém-formados não aprovados deixarão de trabalhar? Desejam incentivar a proliferação de cursos pré-exames e o círculo “cursinho-faculdade-cursinho-conselho profissional”?
Algumas entidades, como o Cremesp, tentam seguir o exemplo da OAB e aplicar exames nos recém-formados de sua área. Só 44% dos poucos alunos que fizeram neste ano as provas do Cremesp passaram para a segunda fase do exame -boicotado por alunos da Unicamp, da USP e de outras instituições.
No editorial “Exame médico” (17/ 12), esta Folha reproduz a insinuação de que os que boicotaram o exame seriam “maus alunos”. O jornal procurou ouvir as razões dos estudantes? O Cremesp sabe que o teste é ilegal e que suas provas, por melhores que sejam, não medem os conhecimentos acumulados em seis anos de curso.
Sabe também que quem não passar poderá ter constrangimentos e dificuldades no exercício da profissão.
É preciso melhorar a qualidade do ensino. A aplicação de testes desse tipo não resolve o problema e fará do elo mais frágil -os estudantes- as vítimas. Se o ensino é ruim, cabe ao Estado melhorá-lo, fiscalizar os cursos ofertados e fechar os que não prestam. Ou seja, reprovar a faculdade.
Em outubro, por exemplo, o Ministério da Educação confirmou a suspensão de 690 vagas de ingresso em 9 dos 17 cursos de medicina cujos conceitos de avaliação foram classificados como insatisfatórios.
Em vez de implantar um teste como o da OAB, os conselhos de medicina deveriam buscar manter informados os estudantes sobre quais cursos não apresentam boas condições de ensino e acompanhar, com o Ministério da Educação, a formação do profissional ao longo de todo o curso -e não puni-lo ao final.


FLORISVALDO FIER , o dr. Rosinha, médico pediatra e servidor público, é deputado federal pelo PT-PR.

(Retirado do site do Centro Acadêmico Livre de Medicina)